domingo, 23 de março de 2008

Um outro sonho


Hospitais são sempre paisagens horríveis. Mesmo para consultas de rotina e, espero que a vida real não copie a vida em sonho, no caso de internações. Estava lá, de cama, xingando a comida do hospital, como uma boa paciente temperamental faria quando internada, prostrada numa cama, usando camisolões e com enfermeiras limpando a minha bunda a contragosto (meu e delas). Recebia poucos amigos e a visita do médico que cuidava daquelas feridas que a gente consegue ver e são bem mais fáceis de tratar. É fácil reconhecer a importância dos médicos. Eles passam por anos e anos de provação na faculdade, fazem residência, conversam sem problemas com os mortos, nos receitam remédios genéricos sem olhar na nossa cara e ainda nós pacientes corremos o risco da surpresa de pedaços de algodão no raio-x após a operação.

O médico era jovem, bem apessoado como diriam as mães e simpático. Sorriso extra-large, colgate e Listerine. No entra e sai de visitas, injeções, ele, por ignorância ou sacanagem mesmo resolve mexer em casa de marimbondo. E se essas minhas feridas, essas visíveis e – pior – as invisíveis não fossem artifício de atriz, mise-en-scene? Ah, por Dioniso. É difícil reconhecer a importância dos atores. Eles são como as filhas das putas que têm de atravessar a rua com dignidade mesmo que toda a Liga das Senhoras Católicas esteja do outro lado, gritando que sim, elas são filhas da puta e isso é um grande problema social, um cancro, uma ameaça de epidemia na cidade. Esse povo de teatro, essa grande esbórnia, que rouba um termo da medicina – catarse – pra explicar o momento final na tragédia clássica, de identificação com o personagem trágico e purgação dos sentimentos. Esses comediantes conhecidos na Grécia como upocrités, fingidores. Essa gente que faz da mentira seu ganha pão.

Respirei, sem ajuda de aparelhos. Ah, seu doutor. Não zombe disso aqui (apontei pro rosto). A gente vive de travestir a verdade em mentira. Mesmo que seja uma verdadezinha que o senhor não acredite, mesmo que equivocada, mesmo que mentirosa. E, não pense que a vida é fácil para nós, filhas das putas atores. Porque temos de transformar toda essa mentira em algo verdadeiro em uma, uma hora e meia. Todos os roxos que custaram nos meses de ensaio, as dores de cabeça, as descobertas, tudo tem de ser colocado lá, na respiração certa, na precisão do giro do mortal sem se estrepar feio. Pra contar eu preciso estar inteira, com o copo à espera da última gota, pra que tudo transborde. Em alegria-tristeza-o-que-quer-que-seja. Ah, doutor, não queira que eu seja metade disso. Eu preciso ser generosa, mesmo que o público não me entenda e venha com seu arsenal de tomates e repolhos, mesmo que a vida esteja naquela ladeira minutos antes de sair das coxias. Por isso, peço, não zombe das minhas feridas que podem ser as tuas também. O meu desserviço prestado à sociedade ajuda uns e outros a atravessarem esses corredores brancos, as filas de espera, o pavor das injeções e os diagnósticos errados.

A propósito, antes de meter fundo essa agulha ai, o senhor sabia que Tchekov era médico também?

Nenhum comentário: